Amores possíveis: direitos autorais, leitura e acesso à cultura

20/04/23

Allan Rocha de Souza 1

Introdução

A atividade editorial cumpre o nobre papel de trazer ao público conteúdo textual, em suas várias vertentes. Neste processo, desenvolve estruturas que envolvem diversos agentes que atuam para fazer com que o produto seja produzido, disponibilizado e, ainda, encante seus destinatários, que são os leitores, ao ponto de convencê-los a adquirir o livro.

Entendendo o fenômeno cultural como um conjunto de redes ou teias de significações, dentro das quais se atribuem sentidos a diversas atividades, locais e artefatos, não é difícil vislumbrar o livro e a produção literária como bens culturais, que são distintos justamente pelo papel que exercem na construção das redes de significados, da cultura de um determinado grupo social, dentro da qual a própria produção cultural está inserida e faz sentido.  

Para as finalidades e escopo destas colocações, essencial é nos debruçarmos, nestas poucas linhas, sobre a questão do direito de acesso à cultura, informação e conhecimento. Não só porque as possibilidades e formas de acesso condicionam as próprias práticas culturais, afetando sua realização e amplitude, mas também porque o acesso é também condição indispensável para a formação do próprio desejo de participação cultural, e é justamente este anseio cultural que, uma vez instaurado, transforma este tipo de produto em essencial. Em outras palavras, é o acesso que promove o anseio, e é este desejo que converte o não leitor em leitor, o cidadão em público.

Direitos de Acesso e o Gosto pela Leitura

A ampla disponibilização dos bens culturais é objetivo tanto do direito de acesso à cultura quanto dos direitos patrimoniais de autor. O primeiro almeja assegurar a possibilidade de participação por meio da fruição dos bens culturais, enquanto os últimos ambicionam o proveito econômico por meio da cobrança por usos da obra. O direito de acesso à cultura e os direitos patrimoniais dos titulares não são, contudo, antagônicos, pois compartilham objetivos comuns.

Os objetivos comuns, no entanto, só são plenamente alcançados na medida em que os bens estejam substancialmente disponíveis para fruição. Contrariamente, sua parca disponibilidade significa tanto sua diminuta utilidade patrimonial quanto inflada restrição ao acesso, e, assim, ao mesmo tempo, deixa de satisfazer tanto sua função econômica quanto social. Nesta perspectiva, a exclusividade torna-se desnecessária quando identificada sua pequena relevância patrimonial em relação ao ganho social obtido. A proteção cede lugar, neste momento, ao interesse social primário de assegurar o acesso à cultura, cuja finalidade é, na essência, existencial e coletiva.

Caso a garantia aos titulares da exclusividade dos usos patrimoniais não fosse arredada mesmo em face da modesta disponibilidade ou interesse econômico dos bens objeto da proteção por direitos autorais, permitir-se-ia que servisse aos propósitos do controle e dominação culturais, instalando uma verdadeira censura de mercado, de todo inaceitável por frontal colisão com as normas constitucionais. Além do mais, se a indisponibilidade for resultante de injustificadas ações, positivas ou negativas, dos titulares, conforma-se, então, como um efetivo abuso do direito, pois reflete um descumprimento de seus deveres funcionais.

Desta forma, temos que a oposição entre o direito de acesso à cultura e os direitos patrimoniais autorais ocorre como consequência da acanhada disponibilidade dos bens literário-artístico-culturais e injustificada restrição à sua disponibilização e circulação. A relação entre o direito de acesso à cultura e a exclusividade patrimonial dos titulares de direitos autorais é, muitas vezes, de proporcionalidade inversa, pois, quanto maior for a utilidade econômica direta e imediata de determinado uso, menores serão os espaços de livre utilização, que serão mais amplos na medida oposta da sua disponibilidade comercial e viabilidade de acesso – isto, claro, sem falar nas situações em que a plena disponibilidade não seja do melhor interesse geral, como nos movimentos de ‘abertura de direitos’ por meio de licenças, repositórios, sistemas, etc.  .

Ao mesmo tempo, é essencial lembrarmos que a experiência cultural é um dos pilares formadores da pessoa e conditio sine qua non para o desenvolvimento integral de sua personalidade, pois, a partir destas, são elaboradas e reelaboradas as visões e construídos os universos simbólicos com os quais o mundo é apreendido. O caráter constitutivo das experiências culturais remete ao princípio da dignidade da pessoa humana. O sentimento de pertencimento a uma comunidade, consequência das experiências culturais comuns, e de valoração positiva deste vínculo são pressupostos reconhecidos não só para a plena cidadania, mas também são vetores da construção das identidades individuais e coletivas.

E o ponto de partida para estas experiências culturais é o direito de acesso. No entanto, não é possível pensar em acesso sem o correspondente direito de fruição destes bens e vivência das experiências. Acesso sem a possibilidade de fruição é preceito abstrato, vazio, inócuo, inoperante, contrário à lógica da substancialidade das normativas constitucionais. Acesso e fruição são, portanto, conceitos vinculados e mutuamente implicados, pois refletem as mesmas finalidades, que é permitir a participação cultural plena. Sem acesso, também não é possível inclusão, emancipação, cidadania, democracia ou desenvolvimento culturais, nem a formação, criação, manifestação, produção ou expressão culturais, que somente são viáveis a partir da fruição dos bens culturais.

A importância do direito de acesso é ressaltada quando pensamos nos seus efeitos sobre as práticas e negócios da cultura. Na medida em que se pode afirmar que não existem criadores sem que antes tenham sido expostos às manifestações que vierem a criar, deve-se admitir que o acesso seja, em última instância, o principal elemento fomentador da autoria. Ao ir além e compreender que as obras somente existem dentro de um contexto sociocultural, de onde são retiradas as necessárias referências, diretas ou indiretas, devemos obrigatoriamente percebê-las carentes do pré-existente, com o qual interagem, e que justamente o acesso prévio é o propulsor de novas criações. E, ainda, ao entender, junto com Bourdieu, que o desejo da prática cultural só advém da própria prática, o acesso exerce também o papel de promotor do desejo da experiência e fruição dos produtos, bens e serviços de conteúdo artístico-cultural. 

O acesso aos bens culturais é, portanto, ao mesmo tempo, o fomentador da autoria, propulsor da criação e promotor do desejo de fruir destas criações. O acesso é, deste modo, o elemento imaterial essencial e fundamental para a construção de um ambiente criativo fértil e dinâmico, garantidor da própria sustentabilidade das indústrias culturais, sem o qual toda e qualquer política de promoção de uma sociedade culturalmente rica será ineficaz. E aqui chegamos a um ponto chave destas reflexões: a essencialidade de um direito de acesso robusto e efetivo para a saúde e sustentabilidade do ecossistema cultural

E, para focarmos nos livros, o gosto pela leitura é condição essencial para que o cidadão se transforme em um leitor, um devorador de livros, e eventualmente até autor, pois, ao contrário de outros bens essenciais pela sua própria natureza, a prática cultural só se torna essencial ao cidadão quando desenvolvida, aprendida e culturalmente absorvida.

Direitos autorais e a convivência harmoniosa com os demais direitos

Ao lado dos direitos reservados, exclusivos, patrimoniais de autor, convivem, na mesma estrutura normativa, espaços de acesso incondicionados, a partir dos quais se constituem espaços de livre circulação de bens culturais – literários, artísticos e científicos.  São três os pontos nodais da interseção entre os direitos de acesso, liberdade de expressão e autorais: (i) no estabelecimento de seu objeto (obras protegidas e não protegidas); (ii) nos limites temporais (o domínio público); (iii) nas limitações e exceções (os usos livres das obras protegidas).

Nuclear à tensão na convivência, estão as limitações e exceções (L&Es) aos direitos autorais. As L&Es representam os limites dos direitos autorais frente aos demais direitos fundamentais, servem de ponto de equilíbrio, lócus para harmonização entre os interesses econômicos imediatos dos titulares e os direitos coletivos primários. Além do mais, as L&Es, ao promover a liberdade de expressão e acesso à cultura e constituir espaços de livre circulação das expressões literárias, artísticas e científicas, exercem papel central e essencial na formação do gosto pela prática cultural em geral.

No entanto, a indústria editorial (e boa parte das demais indústrias culturais) ativamente rejeita e ataca reiterada, feroz e sistematicamente qualquer avanço no estabelecimento de L&Es necessárias e adequadas para concretização do direito acesso e sua efetiva e realística harmonização com os direitos autorais – como fica estampado, por exemplo, quando tratamos da acessibilidade das pessoas com deficiência visual, tanto no plano nacional como internacional.

E este agir, em flagrante oposição ao cumprimento dos deveres sociais correspondentes, bloqueia a fluidez da complexa dinâmica entre proteção e acesso e prejudica o tanto desenvolvimento de talentos artísticos como a formação de público e. em última instância, embaraça sua própria sustentabilidade e legitimidade social.

A satisfação dos deveres sociais é condição indispensável para a legitimação tanto da imunidade tributária como também do próprio respeito aos direitos patrimoniais necessários à atividade econômica. Nem o direito de acesso à cultura, nem a liberdade de expressão, nem as consequentes limitações aos direitos autorais são inimigas da indústria e muito menos dos autores, pois tanto autores quanto indústrias dependem, em última instância, dos espaços de livre interação.

Os direitos autorais, na verdade, tanto em seu aspecto pessoal como econômico, estão inexoravelmente embebidos pelos direitos de acesso à cultura e liberdade de expressão. A aura quase transcendental destes objetos e seus criadores só existem porque estes artefatos e expressões são essencialmente culturais, simbólicos, portadores de valores próprios – que inclusive emprestam aos agentes econômicos e sociais tornando-os distintos, simplesmente por ‘trabalharem com cultura’. E não é por outro motivo que os trabalhos intelectuais dos autores – as criações literárias, artísticas, científicas e agora também tecnológicas, além dos próprios criativos – têm uma mística, recebem proteção especial, elevada e acima dos demais trabalhos igualmente intelectuais, ainda que de outra ordem. Os direitos autorais estão embebidos na cultura e engolfados pelos direitos culturais, que lhe legitimam, justificam e alimentam.

Próximos passos…

Os espaços culturais, materiais e imateriais, onde as manifestações culturais são incondicionadas, livres e espontâneas, são os mananciais das culturas. Sua minimização sufoca o dinamismo cultural e retira o alimento que sustenta as próprias expressões literárias e artísticas. Resguardá-los, protegê-los e ampliá-los deve ser prioritário se, de fato, buscamos uma sociedade culturalmente rica, indústrias culturais pungentes, com profusão de autores, obras e público. E não alcançaremos estes objetivos sem um robusto esforço de construção, promoção e proteção de um ecossistema cultural sustentável, no qual o acesso tenha a devida proeminência dentro do sistema regulatório.

Estes espaços são os educacionais, de formação, de pesquisa, de memória e preservação, de inclusão e igualdade, de exploração criativa, etc. Assim como os espaços de preservação ambiental, os culturais precisam ser restaurados, preservados, protegidos e alimentados – e limitações e exceções aos direitos autorais, adequadas e robustas, nos oferecem o melhor caminho.

Só os (e as) amantes dos livros, dos filmes, das artes, do saber e da cultura se tornarão autores, criarão algo e se tornarão seu público. Estes tipos não surgem no vácuo, precisam ser atraídos, conquistados e alimentados. E os dados sobre a leitura, e também de outras práticas culturais, indicam um relativamente baixo interesse por parte do público nacional em se engajar nestas atividades. Este mundão de gente não teve a oportunidade de se apaixonar e se encantar com a leitura e a cultura, não tiveram acesso às suas fontes, não se tornaram leitores e muito menos autores. Não participam nem contribuem para este ecossistema.

Ao final destas colocações, sobram dúvidas e esperanças. Não temos como saber até quando a indústria editorial (e cultural) dedicará esforço e recursos para impedir a efetivação do acesso essencial e das manifestações culturais incondicionadas, espontâneas e livres; ou até quando conseguirá existir sem novos leitores. Mas mantemos a esperança de que, ainda que em causa absolutamente própria, ao menos alguns agentes sejam capazes de superar a visão oblíqua que imbui muitas das atitudes e ações, ao ponto mesmo de cegar-lhes para os efeitos positivos do direito de acesso para a sua própria sustentabilidade.

E fica o convite para proficuamente avançarmos neste diálogo tão necessário!


Este artigo reproduz parcialmente o capítulo “Leitura e Acesso à Cultura” publicado em Daniel Louzada. (Org.), Livro para Todos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021, p. 129-141.

1 Professor e Pesquisador do Curso de Direito do ITR/UFRRJ; do PPG em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento, Advogado e Consultor Jurídico (PPED/IE/UFRJ); de Direitos Autorais da PUC-RJ. Diretor Científico do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais. Advogado e Consultor Jurídico. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5178459691896082. E-mail: allan@rochadesouza.com.