Navegando em mares revoltos: criações literárias, artísticas e científicas e a apropriação dos produtos gerados por sistemas de inteligência artificial

15/05/23

Prefácio do livro “Direito Autoral e Inteligência Artificial: autoria e titularidade nos produtos de IA”, de Luca Schirru

Autor e obra são conceitos vinculados que iluminam um ao outro, ainda mais quando o conteúdo elaborado e expresso na criação representa e é resultante de um conjunto denso de questões, desafios, reflexões, inflexões, análises, estranhamentos e aprofundamentos vividos e experimentados pelo autor. Os resultados da entrega e esforço na elaboração de um trabalho desta magnitude só são possíveis com muita disciplina e algum talento. E a qualidade do trabalho contido neste livro espelham os inúmeros atributos de seu autor, que não são poucos.

Exigente, estudioso, inovador, atento, dedicado, meticuloso, ético e, ao mesmo tempo, gentil, carismático, sociável e comunicativo, são apenas alguns dos predicados que ressaltam àqueles que tiveram a oportunidade de conviver ou trabalhar com Luca Schirru. Felizardo que sou, tive a oportunidade de acompanhá-lo desde as primeiras aulas de direitos autorais no curso de pós graduação lato sensu em propriedade intelectual da PUC-RJ até a conclusão de seu doutoramento no Programa de Pós Graduação stricto sensu em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED) no Instituto de Economia da UFRJ, quando tive o prazer de ser seu orientador no desenvolvimento da tese que resultou neste livro.

Após a conclusão do doutorado, como todo bom pesquisador, não parou! Muito pelo contrário, deu imediata continuidade à busca incessante por desvendar o ainda não conhecido. E mais, foi além e enveredou-se mundo afora, para ampliar seu conhecimento, confrontar suas presunções, alargar seus horizontes, para, enfim, expandir seu universo e, também, espero, para continuar a colaborar com o desenvolvimento científico e a inovação no Brasil. Neste caminho, já concluiu o LLM no Program on Information Justice and Intellectual Property (PIJIP/AU), sob a supervisão de Sean Flynn, e atualmente está concluindo o seu pós doutoramento na Katholieke Universiteit Leuven (Centre for IT & IP Law – CITIP), sob a supervisão de Thomas Margoni.

O livro ora sendo publicado pelo agora Dr. Luca Schirru é resultado do aperfeiçoamento de sua tese que, como todo bom trabalho, melhorou com o amadurecimento. Este avanço é também reflexo do próprio crescimento pessoal, profissional e intelectual do autor, para o qual muito contribuiu a experiência internacional na qual mergulhou logo após a defesa da tese, em 2020.

Os temas e problemas que o autor enfrenta no Livro “DIREITO AUTORAL E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Autoria e titularidade nos produtos da IA” são não só instigantes e empolgantes, mas também contemporâneos e urgentes. Ainda que focado nos sistemas de inteligência artificial (IA), as questões que enfrenta impactam, em última instância, nossa visão de nós mesmos, enquanto espécie, pois traz ao palco principal a questão sobre se a criação de obras ou expressões perceptíveis e capazes de gerar sentimentos e produzir significados é  restrita aos seres humanos ou se, ao contrário, uma produção objetivamente equivalente, desenvolvida por outras espécies ou por sistemas de IA, também poderia ser enquadrada como ‘criação’ para fins de proteção jurídica.

Por mais que estas expressões pareçam arte e lhe sejam objetivamente equivalentes, (ainda) insistimos que não são arte, seja porque lhes falta emoção, sentido, finalidade, pessoalidade ou, enfim, humanidade. Talvez o problema dos sistemas de inteligência artificial seja que escancaram a fragilidade de nossa perspectiva antropocêntrica do mundo e tendência autocongratulatória, afinal somos muito menos especiais, únicos e distintos dos demais seres vivos do que já sonhamos ser.

Entre os fundamentos que inicialmente justificaram a proteção por direitos autorais e ajudaram a consolidar a conversão de privilégios de edição em direitos autorais, estão as ideias de genialidade dos autores e originalidade das obras. A genialidade seria atributo de alguns poucos que transformaria os artesãos em autores. Esta suposta genialidade – conceito que é historicamente datado, não é o mesmo que talento, que precisa ser desenvolvido, nem resultado de disciplina e trabalho árduo, mas seria uma suposta característica intrínseca de determinadas pessoas que as habilitaria para a criação artística, para receberem a qualificação de Autor, com todos os efeitos sociais e jurídicos em que isso implica. Indiscutível que somos diferentemente talentosos, que a aptidão artística não é igualmente distribuída, mas não podemos olvidar que talentos carecem de ser desenvolvidos e técnicas precisam ser aprendidas e treinadas, nem que genialidade é atributo excepcional e que expressões artístico-culturais prescindem de qualquer genialidade para existir, encantar ou gerar resultados econômicos positivos. E a imensa quantidade de produtos da indústria cultural e criativa comprova que a genialidade é atributo prescindível. O mesmo raciocínio podemos estender à originalidade.

Autoria e obras ou expressões criativas são os conceitos centrais de direitos autorais. É a partir destes conceitos, que são em si dinâmicos, que o edifício dos direitos morais e patrimoniais de autor é construído. Para os direitos autorais, só existe autor se este for criador de uma obra protegida, e só existe obra protegida se forem criadas por uma pessoa física. Esses conceitos são mutuamente dependentes, um não existe sem o outro. Embora, na vida social, o termo ‘autoria’ e ‘criação’ sejam empregados genericamente com relação a inúmeras criações que não são protegidas (ideias, normas jurídicas, coquetéis, etc.), eles não têm valor para fins de direitos autorais.

Esta discussão sobre os paradigmas dos direitos autorais revela os modelos de apropriação destas obras, se e quais direitos deveriam ou não ser atribuídos a quem, sobre qual objeto e em qual extensão. A elucidação dos contornos da ‘propriedade’, interdisciplinar na essência, é por onde o Dr. Luca Schirru inicia sua exposição. Ao contextualizar a(s) propriedade(s) o autor incorpora perspectivas históricas, econômicas e jurídicas, o que permite, com maestria, desnaturalizar o conceito e a visão limitada, inadequada e equivocada que enxerga na propriedade individual privada e absoluta a solução única para a organização e desenvolvimento socioeconômicos. Uma vez libertos, podemos então repensar os sistemas de atribuição de direitos de propriedade a partir de uma perspectiva mais realista, na qual convivem ‘propriedades’ de contornos e estrutura diversos, que melhor refletem as relações sociais e de poder (o contexto) nas quais estão inseridas. No seu desenvolvimento o autor enfrenta a questão das propriedades individuais e comunais, dos commons e anti-commons, da propriedade intelectual e sua relação com a inovação, e estabelece as bases da discussão a partir da renovação dos paradigmas vigentes.

“A(s) Propriedade(s) Contextualizada(s)” dão espaço para uma apresentação sobre os alicerces dos direitos autorais, em que o autor criticamente analisa os aspectos históricos e contemporâneos dos conceitos de autoria e obra protegida, genialidade e originalidade, a atribuição de direitos, os sujeitos destas atribuições e a extensão e limites destes direitos. Luca faz isso com excelência e suas reflexões instigam e iluminam, com um olhar renovado, conceitos especialmente relevantes aos direitos autorais, mas que, quando presos à obtusidade e déficit reflexivo, acabam por esvaziados de sentido, fragilizados e obsoletos.

É no terceiro capítulo que somos apresentados às especificidades dos sistemas de inteligência artificial. Além de as questões mais técnicas da construção destes sistemas, aqui o autor desbrava, em ótima síntese, as complexas relações entre a representação técnica nos sistemas de IA das formas de pensar, comunicar e criar humanas, as pessoas e a sociedade. É instigante acompanhar o raciocínio e análise com os quais somos brindados pelo Luca e, antes de concluir, expõe várias das incursões dos sistemas de IA no mundo das criações artísticas, como obras audiovisuais, musicais, artes plásticas e textos literários e científicos.

Na última parte do livro vemos a convergência dos caminhos intelectuais desbravados pelo autor nos capítulos anteriores, conectando as lições aprendidas no percurso e com enfoque efetivamente renovador, Dr. Luca Schirru,  brilhantemente, após tratar das várias formas de interação entre os criadores humanos e os sistemas de IA e seus potenciais efeitos sobre a criação, nos apresenta o conjunto de sistemas de apropriação que convivem e estão presentes dentro da estrutura de proteção dos direitos autorais e conexos, e discorre sobre as vantagens e desvantagens da utilização de cada qual na atribuição de direitos sobre produtos de características artísticas, literárias e científicas elaboradas autônoma e diretamente pelos sistemas de IA. É justamente aqui, em sua proposta de um sistema de proteção para estes produtos, que o arcabouço teórico e conceitual do autor convergem em uma proposta inovadora que rompe com o óbvio e previsível, que Dr. Luca Schirru adequadamente denomina de “Sistema de Meta-apropriação dos Produtos de IA”.

Cientificamente sólido, escrito com clareza e objetividade, densidade crítica e reflexiva, é um livro de leitura e estudo obrigatórios para todos e qualquer apaixonado, curioso ou interessado em direitos autorais e inteligência artificial, e ainda mais para aqueles que querem aprender e investigar sobre as relações entre estes dois mundos, que rapidamente se aproximam um do outro. 

Tenham uma ótima leitura, é um livro imperdível! 

Allan Rocha de Souza

Rio de Janeiro, 02 de fevereiro de 2023